segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Tempo de chorar & tempo de dançar (& tempo de morrer)

Aproveitando a passagem das festividades do dia de finados, dos fiéis defuntos, dos mortos, seja da tradição cristã ou indígena (ou ambas), propomos aqui uma conversa-viagem (pouco preocupada com o rigor teórico) sobre a dança e sua relação com a morte.



No antigo livro bíblico de Eclesiastes, há um bonito trecho sobre o "tempo para tudo", que diz:

Tudo neste mundo tem o seu tempo;
cada coisa tem a sua ocasião.
Há tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de plantar e tempo de arrancar;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de derrubar e tempo de construir.
Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar;
tempo de chorar e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar e tempo de afastar.
Há tempo de procurar e tempo de perder;
tempo de economizar e tempo de desperdiçar;
tempo de rasgar e tempo de remendar;
tempo de ficar calado e tempo de falar.
Há tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.

É interessante como ele propõe uma série de pares "opostos" complementares, do tipo "tristeza" e "alegria", "guerra" e "paz", "calar" e "falar", apresentando o choro (a lamentação) como o par da dança. "Tempo de chorar e tempo de dançar".

Thoinot Arbeau, um clérigo jesuíta francês que viveu no século XVI, e que ficou conhecido principalmente pela publicação de um importante manual de dança intitulado Orchesographie (que significa a escrita da dança), se apropria de Eclesiastes na epígrafe de seu manual, onde se lê: tempus plangendi, & tempus saltandi (tempo de chorar, & tempo de dançar).

E aí o professor brasileiro André Lepecki, no seu livro Exhausting Dance (que infelizmente ainda não foi traduzido para o português - super indico para quem lê inglês), faz uma análise muito legal da apropriação de Arbeau sobre a associação entre choro/lamentação (mourn) e dança (dance) do livro de Eclesiastes. É como se esse conectivo "&" sugerisse que o tempo de chorar/lamentar está diretamente ligado ao tempo do homem que dança a presença ausente do coreógrafo, aquele que escreveu a dança para que outros pudessem ler, interpretar seus signos e dançar, e que é o objeto de lamentação chorosa do bailarino que dança para celebrar a vida do coreógrafo, eternamente presente através da coreografia e ausente "em corpo".

Há nisso uma boa semelhança com as festividades ritualísticas/religiosas que celebram a vida daqueles que já morreram, quando os vivos visitam os mortos em seus túmulos para rezar por suas almas e, principalmente, para que os mortos não sejam esquecidos pelos vivos. Há nessa comparação uma sugestão da coreografia (o espírito do coreógrafo que visita e é visitado pelo bailarino) como um dispositivo de presença assombrosa, mesmo com o desaparecimento do seu autor.

Mas e quando uma dança não é escrita e seu(s) autore(s) morre(m)? E quando a dança não marca a vida eterna assombrosa e sim a morte por excesso de dança, por excesso de vida?

Diz a história que em 1518, um ano antes do nascimento de Arbeau, também na França, aconteceu um caso de "dançomania", conhecido como Epidemia de Dança, na qual dezenas de pessoas dançaram dias e dias sem descanso até caírem mortas. Com certeza, essas danças não tinham muita relação com uma eternização assombrosa, através de uma criação que seria o dispositivo privilegiado para tempos de chorar e tempos de dançar, para quem quisesse (e pudesse, já que o bailarino deveria ser capaz não só de interpretar os signos dessa escrita, mas também de executá-los) celebrar a vida desses "mestres" ausentes, visitando seus túmulos coreográficos.

Gravura de Henricus Hondius

Essas danças da morte não garantiram a eterna presença assombrosa dos autores-vítimas nas vidas daqueles que decidiriam mais tarde realizar/repetir/reproduzir suas danças, mas, elas abrem espaço para uma ampla discussão sobre a dança em seus aspectos "coreógrafico" e "espontâneo", como duas maneiras bastante distintas de lidar com a vida e a morte na dança. Dançar uma dança “morta” para celebrar a vida de outro e dançar uma dança “viva” para morrer por excesso.

O historiador de medicina John Waller escreveu um livro intitulado “A time to dance, a time do die – The extraordinarystory of the dancing plague of 1518” (tempo de dançar, tempo de morrer – a extraordinária história da epidemia de dança de 1518). Nesse livro, ele propõe que a epidemia de dança foi o sintoma (um fenômeno psicológico) de uma “doença” que envolvia principalmente o medo religioso e o desespero social do povo – ela teria sido algo como um último grande suspiro de vida para dezenas e centenas de pessoas que se viam já mortas, frente às condições de vida altamente exploradas da pobreza.


A título de curiosidade, vale lembrar que a tradução do título do livro de André Lepecki propõe um jogo interessante para "Exhausting Dance", que pode significar "Dança cansada", "Exaurindo a Dança" e até “Dança exaustiva”.

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