Aproveitando a passagem das
festividades do dia de finados, dos fiéis defuntos, dos mortos, seja da
tradição cristã ou indígena (ou ambas), propomos aqui uma conversa-viagem
(pouco preocupada com o rigor teórico) sobre a dança e sua relação com a morte.
No antigo livro bíblico de
Eclesiastes, há um bonito trecho sobre o "tempo para tudo", que diz:
Tudo neste mundo tem o seu tempo;
cada coisa tem a sua ocasião.
Há tempo de nascer e tempo de
morrer;
tempo de plantar e tempo de
arrancar;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de derrubar e tempo de
construir.
Há tempo de ficar triste e tempo
de se alegrar;
tempo de chorar e tempo de
dançar;
tempo de espalhar pedras e tempo
de ajuntá-las;
tempo de abraçar e tempo de
afastar.
Há tempo de procurar e tempo de
perder;
tempo de economizar e tempo de
desperdiçar;
tempo de rasgar e tempo de
remendar;
tempo de ficar calado e tempo de
falar.
Há tempo de amar e tempo de
odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.
É interessante como ele propõe
uma série de pares "opostos" complementares, do tipo
"tristeza" e "alegria", "guerra" e
"paz", "calar" e "falar", apresentando o choro (a
lamentação) como o par da dança. "Tempo de chorar e tempo de dançar".
Thoinot Arbeau, um clérigo
jesuíta francês que viveu no século XVI, e que ficou conhecido principalmente
pela publicação de um importante manual de dança intitulado Orchesographie (que
significa a escrita da dança), se apropria de Eclesiastes na epígrafe de seu
manual, onde se lê: tempus plangendi, & tempus saltandi (tempo de chorar,
& tempo de dançar).
E aí o professor brasileiro André
Lepecki, no seu livro Exhausting Dance (que infelizmente ainda não foi
traduzido para o português - super indico para quem lê inglês), faz uma análise
muito legal da apropriação de Arbeau sobre a associação entre choro/lamentação
(mourn) e dança (dance) do livro de Eclesiastes. É como se esse conectivo
"&" sugerisse que o tempo de chorar/lamentar está diretamente
ligado ao tempo do homem que dança a presença ausente do coreógrafo, aquele que
escreveu a dança para que outros pudessem ler, interpretar seus signos e
dançar, e que é o objeto de lamentação chorosa do bailarino que dança para
celebrar a vida do coreógrafo, eternamente presente através da coreografia e
ausente "em corpo".
Há nisso uma boa semelhança com
as festividades ritualísticas/religiosas que celebram a vida daqueles que já
morreram, quando os vivos visitam os mortos em seus túmulos para rezar por suas
almas e, principalmente, para que os mortos não sejam esquecidos pelos vivos.
Há nessa comparação uma sugestão da coreografia (o espírito do coreógrafo que
visita e é visitado pelo bailarino) como um dispositivo de presença assombrosa,
mesmo com o desaparecimento do seu autor.
Mas e quando uma dança não é
escrita e seu(s) autore(s) morre(m)? E quando a dança não marca a vida eterna
assombrosa e sim a morte por excesso de dança, por excesso de vida?
Diz a história que em 1518, um
ano antes do nascimento de Arbeau, também na França, aconteceu um caso de
"dançomania", conhecido como Epidemia de Dança, na qual dezenas de
pessoas dançaram dias e dias sem descanso até caírem mortas. Com certeza, essas
danças não tinham muita relação com uma eternização assombrosa, através de uma
criação que seria o dispositivo privilegiado para tempos de chorar e tempos de
dançar, para quem quisesse (e pudesse, já que o bailarino deveria ser capaz não
só de interpretar os signos dessa escrita, mas também de executá-los) celebrar
a vida desses "mestres" ausentes, visitando seus túmulos
coreográficos.
Gravura de Henricus Hondius
Essas danças da morte não
garantiram a eterna presença assombrosa dos autores-vítimas nas vidas daqueles
que decidiriam mais tarde realizar/repetir/reproduzir suas danças, mas, elas
abrem espaço para uma ampla discussão sobre a dança em seus aspectos
"coreógrafico" e "espontâneo", como duas maneiras bastante
distintas de lidar com a vida e a morte na dança. Dançar uma dança “morta” para
celebrar a vida de outro e dançar uma dança “viva” para morrer por excesso.
O historiador de medicina John
Waller escreveu um livro intitulado “A time to dance, a time do die – The extraordinarystory of the dancing plague of 1518” (tempo de dançar, tempo de morrer – a extraordinária
história da epidemia de dança de 1518). Nesse livro, ele propõe que a epidemia
de dança foi o sintoma (um fenômeno psicológico) de uma “doença” que envolvia principalmente o medo
religioso e o desespero social do povo – ela teria sido algo como um último
grande suspiro de vida para dezenas e centenas de pessoas que se viam já mortas,
frente às condições de vida altamente exploradas da pobreza.
A título de curiosidade, vale
lembrar que a tradução do título do livro de André Lepecki
propõe um jogo interessante para "Exhausting Dance", que pode
significar "Dança cansada", "Exaurindo a Dança" e até “Dança
exaustiva”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário